O início

Aqui quem vos fala é Mulambo, o Pirilampo do Sertão! Esse ano o desafio se fez forjado no Aço do Vale, no Hospital Márcio Cunha em Ipatinga. A seguir, contarei uma história sobre uma relação que vivi aqui nos primeiros dias com um paciente. Creio eu que essa história simbolize o significado do início de trabalho em um novo hospital, em outra cidade, com novos parceiros e um universo em construção.
 
Chegamos! Eu e Dra. Luba, uma descida de carro para a Unidade II do Hospital, onde fica a Oncologia Pediátrica, e no volante Enoc, sim esse é o nome do simpático motorista que nos leva. Tímido até então, ele segue calado, só escutando as baboseiras da Dra. Luba com a Mariana, a moça da comunicação que nos guia nesses primeiros dias de trabalho. As duas conversam nesse breve percurso uma odisseia inteira, e Emoc segue escutando e eu palpitando. Meu peito segue o mesmo ritmo, palpitando uma mistura de euforia com suspense do “novo”. Que bom é poder viver ainda essa eterna sensação do “novo”, pela qual mesmo depois de sete anos, mais de 500 visitas em diferentes hospitais, ainda sou tomado, “domado”, encantado. Descemos e caminhamos a passos sim, passos não em direção ao destino inicial, a onco.
 
Lá acontece o nosso primeiro encontro com um paciente, o Antony! Sua primeira reação foi fechar a cara, fazer um bico e colocar um dos braços sobre os olhos, nunca tinha nos visto, e assim escolheu seguir. Nós resolvemos nos aproximar, afinal era nosso primeiro encontro, e a emoção faz a sabedoria escorrer pelo ralo. No primeiro passo, ele começou a chorar e não parou mais, nós recuamos e todos os profissionais de saúde avançaram, não por mal, todos queriam muito que tudo corresse bem, e foram falar com ele: “calma”, “eles são legais”, “olha lá o bichinho”, e a cada fala, parecia que ele ficava com mais raiva. Eu por dentro o entendia, e o acompanhava nesse sentimento, pois é preciso nos dar tempo, compactuávamos. Com isso, saímos de perto, dando o espaço que ele precisava, e nós também. Fomos para os outro quartos, fizemos nossos outros primeiros atendimentos, “O Peixinho” foi a primeira música que tocamos, e não poderia ser diferente. Antes de ir embora, em meio a um mar de bolhas dei um tchau para o Antony, dizendo: “estamos indo embora, tchau” como quem diz: “você é quem manda”. Ele, levantou o bracinho e deu tchau, como quem responde: “Ufa!”. Fim do primeiro dia.
 
Segundo dia. Pegamos a carona com Enoc, ele calado e simpático. Dra. Luba e Mariana hoje conversavam sobre o Amor, e eu palpitava e segui palpitando. Chegamos. Antony com o braço no rosto, no leito, muito pacientes no quarto, e nós, por trás de um tapume, seguimos fazendo de tudo pra fisgar a atenção dele: bolhas, peixe, carrinho. Ao perguntar para um outro paciente se ele estava olhando, a resposta era sempre não, mas eu sabia que umas olhadinhas ele dava. Depois de tentar de vários artifícios, percebi que ele não havia chorado, hora de sair, um galope, uma batida na porta e já estávamos fora. Um dia de cada vez. Fim do segundo dia.
 
Terceiro dia, agora já com a Dra. Zabeinha, pois sim, nesses primeiros dias estou fazendo testes besterológicos para saber quem vai trabalhar aqui comigo. Enoc, na carona, atrasado o meliante, disse que tinha que levar o chefe a um local, e se tratando do chefe nada poderia fazer, sábio Enoc. Dra. Zabeinha com toda a sua simpatia e liberdade puxou boas conversas com Enoc, palpitei bastante. Antony olhando desconfiado, no quarto um outro paciente com uma enfermeira que tentava pegar o acesso – uma luta – e o menino relutando, sabia que alí hoje seríamos breves e por isso mesmo, precisaríamos ser simples e potentes.
 
Surgiu o Blue, um passarinho azul que está no rastro da Zabeinha há anos, e por onde ela passa ele vai atrás. Blue desfilava sua plumagem por todo o ambiente ao som de “peixinho”. Antony observava, porém agarrado à mãe, símbolo de confiança. Seguíamos com o pairar da música e do som, até que passando pelo leito do Antony, o Blue, safado que é, deu um mergulho sagaz e com suas garras afiadas afanou uma maçã da mesinha do Antony. De pronto, eu fiz um “psiu, é do Antony” e ele, não sei se por gratidão, ou pelo susto, retribuiu com um espontâneo sorriso. Blue devolveu a maçã e nós seguimos o nosso caminho voando com o Blue em novos encontros. Fim do terceiro dia, e por hora não tenho mais nada pra contar, pois amanhã começa o quarto dia de trabalho e novas aventuras no novo Hospital Márcio Cunha.
 
Texto: Dr. Mulambo
Foto: Carol Reis / Hospital da Baleia – 2019