O Super-Eu e os Super nós

Sonhava em fugir com todas as pessoas do hospital! Aqui, em Brumadinho, sonho em cavar, cavar cavar… Seria meu sonho de Super-herói? O palhaço argentino, Gabriel Chamé, diz que o palhaço quando é herói é bem ao avesso, é sem querer. No dia que você cair desse sonho vai acontecer, um sujeito não pode ser tão perfeito e ainda assim ser paspalho, a não ser que isso seja contra ele mesmo.

Pensei: então, é o cúmulo. O cúmulo é quando vai sem ter, foi! Aqui, é o cúmulo de muita coisa. Junto dos parceiros, precipício. Comecei a cair. Construir enormes rampas em gestos, e cair. Voo livre sem paraquedas. Caindo e derrubando cadeiras, remédios, paredes, barrancos, eu. Que dor! Que prazer!

Hoje, teve um momento em que a palhaça, que tocou, nadou, riu e ajudou a rir, chorou. Chorou o cúmulo, chorou o acumulado. Nós, silêncio. É barra. E o sonho mesmo? Cavar, cavar, cavar… e fugir com todos de lá! Instaurar uma loucura, estourar uma fuga coletiva, instaurar uma explosão.

Como eu farei isso? Com o “eu“, com o “nós”. Montanha no volante rouba um caminhão da Vale. Provisoriamente, Provisória improvisa uma música do alto do morro, Risoto grita: óia eu! O povo vai escutando a zabumba de Lola que acompanha o movimento. Eu e a topa tudo, mais conhecida como Jurubeba, estamos lá na contenção, fazendo uma montanha de brita pra conter a lama… só um sonho! Uma alquimia de suores.

Teve um dia no hospital que eu voei pelo corredor, em direção a farmácia. O resultado: uma ampola de remédios quebrada no chão. Nenhuma reprovação naquele momento. Talvez só a sua, agora, de pensar que é um absurdo um palhaço quebrar um remédio dentro do hospital. Sim, é. Mas a moça me olhou com os olhos dizendo que tava tudo bem, todo lugar precisa de doideira pra ter sanidade.

Aqui nas brumas de Brumadinho, cada hora um é tomado por uma doideira, essas das boas. Um busca um piano na rodoviária, outro grita: “óia eu!!!” E nós rimos, rimos muito, e escondidinho choramos. É bruto. Viver é mais que perigoso. Erros e acertos. Somos palhaços, o erro. Temos que ser, e ainda sermos perfeitos? Só uma caricatura do erro?

Ontem os índios pataxó, na reserva onde fomos apresentar o nosso espetáculo, as margens do rio morto Paraopeba, fizeram uma dança sagrada para nós. A gente cantou e se divertiu com a gente, na gente, pra gente. Findada a dança, uma moça que ninguém sabe quem é, veio e me xingou, ao pé do ouvido, dizendo: “um absurdo vocês fazendo trapalhadas num momento desses”. Minha alma navegou tranquilo, pois segundos antes, o cacique tinha falado em bom e alegre tom, que desde o crime da Vale, aquele tinha sido o primeiro momento de muita felicidade na tribo.

Que cúmulo, que precipício! Te digo que aquele instante do remédio quebrado, assim como a festa com os pataxós, são lindas fugas dentro de nenhuma fantasia. O olhar de Risoto sempre me diz: “não se preocupe, Mulambo, você faz muito mais por nós! Nós mesmos queríamos quebrar o que você quebra por nós”. Quanta arrogância a minha pensar que ele me pensa assim. Talvez seja pretensão pensar o que foi essa festa toda. Será que os outros realmente acharam boa? Porém, nós, que de “super” temos o desejo de servir com o riso, com o risco, chegamos com um alento no coração, partilhando com olhares sobre o que foi a festa. Foi circo, círculo, confiança, amor, sonho. Eu sou o “SUPER-EU”! E “eu” é muita coisa. E “eu” tenta ser muito espontâneo, e aí acaba quebrando alguma coisa. “Eu” pensa que posso muita coisa. Logo, posso? Espero poder quebrar muitas outras paredes que me separam de você, paredes que separam aquelas pessoas da liberdade, da alegria, de voltar a não ter medo.

Eu sou o “SUPER-EU”! E “eu” é muita coisa. E “eu” tenta ser muito espontâneo, e aí acaba quebrando alguma coisa. “Eu” pensa que posso muita coisa. Logo, posso? Espero poder quebrar muitas outras paredes que me separam de você, paredes que separam aquelas pessoas da liberdade, da alegria, de voltar a não ter medo.

O menino dorme com a mochila cheia de pão e água, caso precise de novo fugir da lama da Vale. Paredes, paredes de lama, portões e cancelas que impedem a livre circulação ao lar. Às vezes, quanto mais eu quebro essas paredes, mais você e eles, ou alguém, ou ninguém, ou mesmo eu, vamos construindo, tijolos invisíveis em outro no lugar.

Isso me faz pensar que eu devo continuar quebrando com mais força. E mais força não é colocar mais dinamite, ainda que às vezes seja sim, e outras vezes não. Às vezes, é só soprar que cai um mundo. Em “o lobo mau e os três porquinhos”, o lobo é o herói ou o vilão? E os porcos, acomodados, incomodados com quem os sopra? Mocinhos? Vixi, quanta especulação! Quantos sonhos… Sonho em entender um pouco mais sobre a liberdade, entender a dramaturgia disso, cravar no corpo uma lógica que venha dele mesmo, que seja capaz de agir com urgência e achar os fins sem nenhuma lógica. 1+2=3, ou não. Às vezes, algo explode e não tem lógica que explique o milagre. Lógica do sem lógica. Ser louco e não ser. Não tenho tempo, ele não para. A lógica do instinto. E não da lógica-lógica. A lógica do instinto é entendível depois.

Hoje teve piscina. Veja bem, crianças que nadavam em rios agora nadam em piscinas na casa de um dos que não perderam a casa. Louco isso! O Super-Eu: Mozart-maracatu-capoeira-jagunço-piano-cavalo-motanha-goleiro-coral-teatro-forró-for all-pegador de correrdeesconderpolicialadrão-ticoticofuzilada-trocatroca-caínopoço-caçar roía-ocravobemtemperado-crux-mãe-pai-filho-morte-sirene-incendio-piaba-oitomaluco-jãomaluco-volei-balé-cuecaoucalcinha-vitrola-K7-anarquia-o rosa-Tiojuquinha-circocomvacas-o guarda-roupas-roupassempresujas-joelhosralados-muros-semlimites-violão-meusertão-serTÃO-Bach-penabranca-xavantinho-tupiornottupi-fredmercuri-xavante..AVANTE.

Besta é eu? besta és tu? Besta é um jumentinho que tinha lá na roça. Ele era lindo, era ele. Tem uma corda amarrando as cabeças nas racionalidades. Sonhos de perfeição, de felicidade, medo de morrer, de errar. Oi!!! OUUUU!!! As mãos, as pernas, estão livres! O coração. Vamos montar uma gangue? Os SUPERS-EUS! Misturei muita coisa nesse texto, é que no meio do caminho tem muita lama,tem muita lama no meio do caminho, e eu tô muito misturado!

Fernando Oliveira (Dr. Mulambo do Sertão)